Nossa proposta para o Festival International des Jardins de Chaumont-sur-le-Loire, cujo tema de 2020 é “Retorno à Mãe-Terra”, toma a destruição do Cerrado como mote de projeto. O Festival é “o laboratório mundial no âmbito dos jardins e da criação paisagística contemporânea”, e acontece anualmente nas dependências de um castelo construído há 500 anos no Vale do Loire, uma região no interior da França tombada pela Unesco e conhecida por seus esplêndidos castelos renascentistas.
Piro-Paisagem é um arranjo de galhos podados e troncos queimados coletados em uma área protegida no sopé da Serra da Moeda (MG), local bem próximo da Casa no Cerrado. O projeto expõe os galhos em linha, qual animais abatidos pendurados num frigorífico, e funciona como um “jardim botânico póstumo” de espécies encontradiças nos estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia. Em princípio, é um jardim morto feito de plantas expostas de cabeça para baixo.
Além da referência aos abatedouros, outra conotação do jardim é que o Cerrado é um bioma de árvores com raízes muito maiores que os galhos. São plantas adaptadas a regiões mais secas, capazes de alcançar lençóis freáticos muito baixos e, por isso, plantas mais terrestres que aéreas. Órgãos sem olhos e sem ouvidos que exploram um mundo subterrâneo sem sol e sem movimento, as raízes fazem das árvores seres anfíbios, ligando a terra ao ar, vivendo num mundo críptico e nutrindo as folhas que buscam a luz. “As raízes não são o que se acreditou que eram, mas expressam e encarnam uma das características mais marcantes da existência vegetal: a ambiguidade, a hibridez, o caráter anfíbio e dúplice. (…) É, de fato, através do sistema radicular que uma planta obtém a maioria das informações sobre seu estado e do meio em que está imersa; é ainda através das raízes que ela entra em contato com os outros indivíduos limítrofes e gere coletivamente os riscos e as dificuldades da vida subterrânea. As raízes fazem do solo e do mundo subterrâneo um espaço de comunicação espiritual.” (Emanuele Coccia, 2016). É justamente nas profundezas do solo ácido e imprestável do Cerrado que elas encontram vida onde nenhum outro organismo consegue, transformando tudo o que tocam em energia e alimento.
Muito mais vivo que morto, o jardim é um complexo de raízes que flutua sobre (e não toca) os solos frios e arenosos do vale do rio Loire; é uma matriz de galhos invertidos que propõe outros sentidos para o Cerrado. E manifesta uma questão premente e urgente: como o Cerrado está virando soja e pasto, os galhos queimados desta piro-paisagem denunciam um problema ambiental que só tem se agravado nos últimos anos.
Fotos: Eric Sander